Nota tomada de Pesquisa Fapesp nº136 (Julho 2007)
Com potencial para alterar profundamente o desempenho humano, a nova convergência de tecnologias deve ser debatida pela comunidade científica
Mariluce Moura e Neldson Marcolin
O neurocientista Esper Abrão Cavalheiro, 57 anos, assessor do Centro
de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), está nesse momento encarregado
de uma tarefa muito especial. Ou melhor, ele se vê inteiramente
atravessado por uma missão titânica: provocar um intenso e, se possível,
produtivo debate na sociedade brasileira sobre as chamadas tecnologias
convergentes, para que o país não se atrase além da conta nesse novo
campo tecnocientífico que poderá provocar, em futuro próximo,
transformações formidáveis no desempenho do ser humano, na exploração de
seus limites potenciais e na conservação de sua saúde – entre outros
efeitos. “Precisamos ter um feedback da comunidade científica sobre esse
tema para que possamos discuti-lo com o governo, com os empresários e
com os cidadãos deste país”, resume Cavalheiro.
A rigor, as chamadas tecnologias convergentes, uma vasta área de
interação da pesquisa em nanotecnologia, biotecnologia, tecnologia da
informação e ciência cognitiva, fizeram sua estréia na cena pública com
este nome em junho de 2001, numa reunião organizada pelos pesquisadores
norte-americanos Mihail C. Roco e William Sims Bainbridge, com apoio da
National Science Foundation (NSF), em Arlington, Virgínia. Desse
encontro saiu o documento Converging Technologies for Improving Humam
Performance, um cartapácio de quase 500 páginas das quais emergem
possibilidades técnicas até aqui impensáveis, muitas delas beirando a
pura ficção científica, para âmbitos tão distintos quanto o da defesa
militar e o da saúde humana.
Dois anos depois, a Comissão Européia resolveu lançar
um olhar mais enraizado em sua tradição humanística às tecnologias
convergentes e publicou o pequeno documento Converging Technologies:
Shaping the Future of European Societies, com perto de 70 páginas, mas
ambicioso no propósito de definir o novo campo segundo um european
approach. De acordo com ele, “os cidadãos da Europa se beneficiarão das
CT se elas forem implementadas com vistas aos cuidados de saúde,
processamento de informação e comunicação, mitigação ambiental, fontes
de energia e outras áreas de interesse público e pessoal”.
É nesse universo complexo das tecnologias convergentes
(TCs) que Cavalheiro, professor titular de neurologia experimental da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), se vê mergulhado há alguns
meses para coordenar a discussão do que deve ser a participação nacional
ativa na circunscrição das pesquisas, das bases de financiamento,
dos marcos regulatórios, das políticas, enfim, que vão consolidar os
marcos fundadores dessa área. Cientista respeitado, com uma contribuição
importante para a definição de modelos experimentais de epilepsia, já
faz algum tempo que ele ocupa postos importantes na gestão da política
científica no país, incluindo a presidência do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A seguir, os principais
trechos da entrevista que Cavalheiro concedeu a Pesquisa Fapesp:
Há um tema novo que nesse momento ocupa bastante suas reflexões, que é
o das tecnologias convergentes, principalmente na área médica. Podemos
começar pelo conceito: o que são as tecnologias convergentes?
— Ao observar o desenvolvimento da ciência, verificamos que existem
momentos em que há uma fragmentação que facilita a compreensão de
fenômenos mais intrínsecos de uma determinada área, e outros em que
ocorre certo agrupamento, uma convergência. Essa alternância é
fundamental e, para exemplificar com algo mais recente, pode-se recorrer
à biologia, que passou por um período de fragmentação, de divisão em
várias disciplinas dela derivadas. Nas últimas décadas, várias dessas
disciplinas, em associação com outros campos do conhecimento, entraram
num movimento convergente ao redor do gene ou do DNA e que propiciou o
surgimento deste fantástico campo da genômica e suas ramificações. Mais
recentemente – e agora falando de forma específica desse tema ao qual
estou me dedicando –, Mihail Roco, um cientista muito influente da área
de nanotecnologia e que conseguiu alavancar grandes financiamentos
nos Estados Unidos, foi chamado pela National Science Foundation (NSF)
para provocar outro tipo de discussão. Em 2001, ele e William Bainbridge
organizaram uma reunião que denominou de Converging Technologies for
Improving Human Performance.
Foi então a primeira reunião para discutir essa convergência de tecnologias?
— Esse primeiro encontro nos Estados Unidos propôs a atuação convergente
de quatro áreas: a nanotecnologia, a biotecnologia, a tecnologia da
informação e a ciência cognitiva – hoje ampliada para toda a
neurociência, com o objetivo de promover a interação entre sistemas
vivos e artificiais na busca de novos dispositivos ou fármacos que
sirvam para expandir ou melhorar as capacidades cognitivas e
comunicativas, a saúde e a capacidade física das pessoas e, em geral,
produzir um maior bem-estar social.
Onde ocorreu a reunião?
— Em Arlington, Virgínia, onde se reuniram pesquisadores dessas quatro
áreas e que, de alguma forma, já trabalhavam com o conceito da
convergência. Por exemplo, nanotecnologia e biotecnologia convergiam
dentro de um projeto para se encapsular novas drogas ou para diminuir
efeitos colaterais de medicamentos. Outros associavam tecnologias da
informação (TI) com biotecnologia para alerta de desastres biológicos
via comunicação rápida. Assim, algumas áreas que estavam caminhando
isoladamente foram conclamadas a participar conjuntamente (converging
technologies) do esforço na solução de importantes questões humanas.
Penso que o termo “tecnologias convergentes” não seja a melhor tradução,
porque elas por si sós não convergem como, por exemplo, no caso das
tecnologias digitais. Aqui, tecnologias inicialmente separadas são
chamadas a contribuir na construção de um novo paradigma, daí eu
preferir chamar de “nova convergência tecnológica” ou “convergência de
tecnologias”.
Não são tecnologias que dialogam entre si.
— Estamos falando de áreas de grande desenvolvimento recente e que,
mesmo isoladamente, são capazes de trazer modificações significativas na
sociedade e no ambiente. O simpósio americano teve o objetivo de
mostrar as inúmeras vantagens que podem advir de sua interação, não no
sentido daquilo que uma possa proporcionar ao desenvolvimento da outra,
mas na construção de propostas a partir de perguntas comuns. Ali, o
título apontava como objetivo o “aprimoramento do desempenho humano” e a
discussão indicou as inúmeras possibilidades de aplicação, como a
melhora do desempenho humano, da comunicação global, do prolongamento da
vida etc.
Quer dizer que não visava somente à saúde?
— Embora possa se considerar a saúde humana como peça central do
simpósio, chegou-se mesmo a propor um novo ambiente social a partir da
nova convergência, o que, em determinado momento do simpósio, foi
proposto como o “renascimento da ciência”. Isto é, uma nova era da
ciência e da tecnologia resultante do agrupamento dessas áreas, e que
poderá fazer diferença na sociedade do futuro. Outros aspectos estiveram
relacionados ao uso da convergência na segurança das nações ante os
novos tipos de agressão – guerra biológica ou química, por exemplo –,
levando à necessidade de um aprimoramento no sistema de defesa dos
países, e que envolveria desde cuidar fisicamente do soldado que está no
front até provê-lo com roupas que pudessem estar em contato, via
satélite, informando suas condições de combate. Entretanto, quando se
observa mais de perto o documento, vê-se que grande parte dele se dirige
ao potencial humano, aos dispositivos para substituição de órgãos ou
parte do corpo, à comunicação sem a barreira de diferentes línguas, isto
é, na direção de uma nova sociedade.
Essas idéias estavam então bem localizadas nos Estados Unidos. Mas em
sua recente viagem para uma reunião sobre o mesmo tema na Áustria este
já ganhara uma dimensão internacional. Como se dá a discussão das
tecnologias convergentes em 2007?
— Em 2004 saiu o primeiro documento da Comunidade Européia sobre o
assunto e ele ganhou um nome diferente: Converging Technologies for a
Diverse Europe. Nesse texto compreende-se que a Europa – historicamente
mais humanista, e que representa um conjunto de países com culturas, às
vezes, muito distintas e com níveis diferentes de desenvolvimento
econômico e social – procura incluir a dimensão humana, suas culturas e
seus valores na nova convergência, para além da busca de um melhor
desempenho. Questões sobre o que e em quem aprimorar esta ou aquela
função são complicadas e essa discussão não pode ficar restrita apenas
ao ambiente científico. Dessa forma, o documento europeu se lança sobre
questões mais prementes da sociedade humana e de como a nova
convergência pode auxiliar na solução de problemas como a energia,
mudanças climáticas, poluição, aumento da obesidade, da hipertensão, da
longevidade humana, o abuso de drogas psicoativas etc., além de propor a
ampliação da nova convergência com a inclusão das ciências humanas e
sociais, parâmetros fundamentais para a compreensão do humano.
Quer dizer, a Europa muda o enfoque das tecnologias convergentes.
— Dentro do documento americano a importância de “sair na frente” está
claramente associada à noção de competitividade, não só científica mas
de garantia de mercado. A Europa tenta amenizar esse aspecto e se
interroga até aonde se pode ir com a nova convergência sem que seus
cidadãos – já que são eles que realmente financiam os avanços
científicos e tecnológicos – participem do debate e decidam sobre sua
direção.
O problema então é como se estabelece esse campo das tecnologias
convergentes sem que ele seja associado à manipulação da vida dos
indivíduos por instâncias de poder incontroláveis.
— Pode-se dizer dessa forma. A leitura atenta de qualquer dos documentos
produzidos por diferentes países sobre a convergência tecnológica
possibilita antever que se descortinam benefícios fantásticos para a
saúde humana, os quais têm sido recebidos com verdadeiro entusiasmo. Na
interação homem-máquina, por exemplo, poderíamos empregar as técnicas de
informação para resolver determinados problemas de motricidade ou de
comunicação de pessoas com problemas graves de linguagem, visão ou
audição etc. Mas quando se percebe que os limites entre a ação
terapêutica e o aprimoramento de funções cognitivas estão pouco visíveis
esse entusiasmo diminui.
É uma discussão que se estabeleceu em relação a drogas como o Prozac,
não? Deve-se tentar livrar a humanidade da tristeza, tratá-la como se
fosse uma patologia?
— Essa discussão que tem ocorrido com mais freqüência nos ambientes das
ciências humanas e sociais, e que em certa medida se associa ao repúdio
àquilo que se tem chamado de medicalização da saúde, começa a indagar
quem terá o direito de decidir sobre o que deve ser aprimorado, e
quando, e em quem. Quais serão os possíveis efeitos sociais? Que
instituições vão cuidar de sua regulamentação? Entretanto, a nova
convergência parece já ser uma realidade que veio para ficar, basta para
isso observar o número grande de eventos médicos que têm ocorrido nos
últimos dois ou três anos com o título de Converging technologies and
new drugs ou Converging technologies for medical equipments etc. Embora a
nova convergência não seja em si um programa formal para o
financiamento da ciência e da tecnologia, seus objetivos têm norteado
outros programas, tanto nos Estados Unidos como na Europa.
Mas antes de entrar no detalhamento operacional, vamos falar da reunião na Áustria, para então chegar ao Brasil.
— Dentro do Programa Quadro 6 da Comunidade Européia foi lançado um
edital para o estudo da nova convergência não só do ponto de vista do
desenvolvimento científico, mas de sua interface com o desenvolvimento
da sociedade européia. Assim, formou-se uma rede de pesquisa, cada grupo
com um objetivo específico, liderados por pesquisadores da Alemanha
coordenados por Nico Stehr. Para ele, que tem se dedicado ao campo de
estudos que intitula de knowledge politics, a crença de que maior
conhecimento redunda obrigatoriamente em maior bem-estar deve ser
repensada. Maior conhecimento e sua adequada aplicação podem, sim, levar
ao maior desempenho econômico, mas não implica que o ganho resultante
seja partilhado pela sociedade. Mas este assunto não era o foco central
dessa reunião. Ali, e por ser a segunda de três reuniões planejadas, os
grupos apresentaram os resultados parciais de seus estudos que buscavam
entender o papel da nova convergência como motor central das iniciativas
de inovação e seus possíveis impactos sobre o futuro da sociedade
européia.
E quando foi a primeira?
— No ano passado. Este ano foi uma avaliação de meio-termo sobre como as
pesquisas estão indo e, no próximo, deve ser apresentado o documento de
consolidação das discussões. Foi bastante interessante conhecer estudo
que aborda aquilo que os cientistas europeus consideram ou não
“realizável” a partir da convergência da nanotecnologia, da
biotecnologia, da tecnologia de informação e da neurociência. E nessa
reunião, com cerca de 80 participantes, foi interessante verificar
discussões acaloradas sobre o uso dessa convergência no transumanismo,
na criação de seres híbridos (humano-máquina) etc. Alguém chegou mesmo a
dizer: “Chegamos aos Cyborgs”.
Eu pensava exatamente nisso…
— Só que dessa vez podemos querer ir além de um filme de ficção científica.
Sua participação foi como assessor do CGEE?
— O CGEE está iniciando um estudo que pretende abordar os desafios e as
oportunidades que a nova convergência pode trazer para nosso ambiente
científico e tecnológico e para a sociedade. Eu ainda estou tentando
compreender as diversas vozes que ouvi, ora entusiasmadas com as
fantásticas possibilidades oriundas das aplicações da nova convergência,
ora céticas e pessimistas. É possível que o que mais tenha chamado a
atenção seja exatamente essa disposição de colocar a discussão em âmbito
público, já que a nova convergência traz consigo dilemas éticos
importantes para que ela fique restrita aos ambientes científicos. Não
se pode postergar esta discussão para quando seus efeitos forem
conhecidos na prática.
O que se pensava em levar ao debate público eram as aplicações potenciais das tecnologias convergentes na medicina?
— A primeira preocupação era com a institucionalidade dessas tecnologias
e de como elas permeiam as instituições humanas, entendendo
institucionalidade como “as regras do jogo”. Outros aspectos discutidos
relacionam-se com o gerenciamento e regulação dos produtos e serviços
resultantes da nova convergência, seus aspectos éticos e legais, e seu
impacto sobre a sociedade. Um aspecto paralelo, mas nem por isso menos
importante, relaciona-se ao papel que as convicções religiosas podem ter
na percepção pública da nova convergência, dado que as decisões
individuais não são simplesmente baseadas no conhecimento corrente.
Mas ante essa preocupação com o desmerecimento do aspecto da
religiosidade pessoal, individual, levanta-se algo bem complicado: como o
Estado laico pode se mover nesse terreno? Estamos no Brasil com um
problema em torno da autorização do uso das células-tronco embrionárias
para pesquisa, por pressões religiosas, e já vamos abrir a discussão
sobre o limite possível da intervenção sobre o indivíduo proposta pelas
tecnologias convergentes. Na condição de assessor de um órgão do CGEE,
qual a sua visão sobre isso?
— Embora haja uma discussão bastante importante sobre a utilização das
tecnologias emergentes, tanto no Brasil como em vários outros países, eu
ainda não tenho uma posição definida, se é que isso é possível, sobre o
assunto e nem isso me tem sido demandado na minha atuação no CGEE.
Trata-se de uma questão relevante, principalmente ao verificar que, ao
lado do avanço recente da ciência, vivemos um período de distúrbios
sociais significantes e que muitas vezes são justificados por diferenças
religiosas ou culturais. A compreensão e a inclusão desses importantes
valores humanos nas discussões sobre o encaminhamento futuro da ciência e
da tecnologia podem contribuir para melhorar a nossa convivência
social.
Qual é a sua expectativa de o tema das tecnologias convergentes
chegar ao Brasil da maneira como já é discutido na Europa e nos Estados
Unidos?
— Temos no país uma sociedade científica bastante atuante nas
áreas-chave da nova convergência. O trabalho desenvolvido no CGEE leva
este fato em consideração e será importante saber como esses
pesquisadores pretendem participar desse movimento em torno da
convergência e quais os desafios que ela nos apresenta. Se observarmos
os documentos já referidos, vamos notar que eles apontam para os
possíveis benefícios que a convergência pode trazer para os países em
desenvolvimento. Mas não acredito que os pesquisadores brasileiros
queiram se privar do debate e de atuar ativamente dessas decisões.
Que mudanças concretas poderemos ver dentro de cinco, dez anos talvez?
— Não precisamos esperar muito, já que alguns dispositivos concebidos
através do princípio da convergência tecnológica já estão em uso.
Pensemos na área médica, por exemplo, onde uma microcâmera incluída em
um comprimido emite, em seu percurso após ter sido deglutido, imagens
sobre todo o trato digestivo para um receptor externo ao corpo. Estas
imagens podem auxiliar no diagnóstico de várias patologias
gastrointestinais sem o uso de técnicas invasivas. Outros exemplos
incluem a incorporação de drogas em nanocompostos dirigidos a órgãos
específicos que ao mesmo tempo que aumentam a eficiência do tratamento
podem diminuir os efeitos colaterais. Alguns desses procedimentos já
estão em uso ou estão em fases avançadas de estudo aqui no país.
O que vem a ser “aprimoramento do indivíduo”?
— O sentido é muito amplo, mas a nova convergência olha esse aspecto de
duas formas: na correção de limitações ou na aceleração de processos
normais. No primeiro caso podemos desenvolver dispositivos que restituam
a visão, a audição ou o movimento a pessoas que apresentem estes
problemas, no segundo, poderíamos pensar no uso de um chip que
acelerasse o aprendizado ou que facilitasse a criatividade. Nesse
sentido, a imaginação pode ir longe.
Então a discussão é: qual a legitimidade desse tipo de intervenção?
— Sim, pois ao lado dessas incríveis possibilidades fica a questão de
quem vai decidir sobre o que vale ou não a pena de ser aprimorado e para
quê.
Como será essa discussão em termos institucionais no Brasil? O que o CGEE está articulando com outros órgãos?
— Organizamos, recentemente, uma reunião no CGEE com vários cientistas
das áreas centrais da convergência ao lado de outros das áreas sociais e
humanas. Foi extremamente proveitoso para o delineamento do estudo que
ora iniciamos. Entretanto, foi surpresa observar que, embora vários dos
presentes já atuassem na interface da convergência, alguns não
estivessem acompanhando os desdobramentos e as discussões que estão
correndo no ambiente internacional de ciência e tecnologia. Esta
observação veio reforçar a necessidade de ampliar o debate em nossa
comunidade, principalmente pelo fato de que essa mesma comunidade tem
atuado de forma extremamente competente na formação de recursos humanos
para atuar no futuro próximo. No trabalho do CGEE está prevista a
participação de órgãos do governo, de empresários e outros segmentos da
sociedade que atuam no campo da ciência, tecnologia e inovação.
Abrir canais para que essa discussão aconteça no Brasil ajuda o CGEE, que tem cinco anos, a cumprir seu papel?
— Em certa medida, nós brasileiros temos muita dificuldade em trabalhar
questões de longo prazo e as preocupações do dia-a-dia tomam quase todo o
tempo, deixando a sensação de que muito resta por fazer. Entretanto,
não podemos deixar de nos preocupar com os possíveis desdobramentos de
decisões tomadas no presente e qual o impacto que elas poderão ter no
futuro da sociedade. Os países mais bem estruturados fazem de forma
contínua estudos de prospecção e de futuro na tentativa de antever
cenários prováveis e desejáveis para daqui a 20 ou 50 anos, de forma a
se estruturarem para que isso seja alcançado. As metodologias utilizadas
nesses estudos são muito ricas e variadas e o CGEE tem se dedicado a
utilizá-las nos seus estudos dirigidos ao campo da ciência, tecnologia e
inovação.
Portanto, com enorme grau de incerteza.
— A ocorrência de eventos não previstos e graus de incerteza estão
incorporados ao processo de pensar o futuro de forma que os estudos não
prevêem um cenário único nem rotas de atuação rígidas que não possam ser
modificadas no processo de sua execução. Quem poderia prever as
mudanças recentes decorrentes do ataque ao World Trade Center de Nova
York e, em decorrência dele, os investimentos financeiros que vêm sendo
feitos no que se relaciona à segurança nacional daquele país? Estes
fatos recentes devem obrigatoriamente ser incluídos nas agendas dos
estudos prospectivos.
Quando o senhor fala em projetos para 2050 no Brasil, está pensando em que áreas?
— O país tem se destacado em temas importantes não só para nós
brasileiros, mas para toda a humanidade. Pensemos nas mudanças
climáticas e no desenvolvimento limpo, nas energias do futuro, no uso
sustentado da nossa rica biodiversidade. Não podemos mais ficar apenas
corrigindo aquilo que já fizemos de errado, é necessário pensar quais os
próximos passos e que conseqüências eles poderão ter no futuro.
Como se deu o seu trânsito da pesquisa e do ensino para o CNPq e CGEE?
— Posso considerar essa mudança como um “presente” de uma pessoa
admirável e que eu não conhecia até aquele momento, o ministro Ronaldo
Sardenberg, que durante sua passagem pelo MCT convidou-me para trabalhar
a seu lado. Ampliar minha atuação do ambiente universitário para
trabalhar na elaboração de programas e políticas de ciência e tecnologia
foi uma experiência notável. Aprendi muito, não só com o ministro mas
com vários membros da equipe, em particular com o secretário executivo,
Carlos Américo Pacheco, outra cabeça privilegiada. E contribuí com muita
dedicação e trabalho nas propostas do MCT.
Seu interesse pela política de C&T vem desde seu tempo de pró-reitor da Unifesp, não é?
— O fato de estar trabalhando há quase 30 anos na Unifesp tem sido um
grande privilégio. O que, por um lado, foi sempre uma grande vantagem,
isto é, ela ter sido centrada na área da saúde, significou, ao mesmo
tempo, uma desvantagem quanto à vivência do conceito de universidade, da
interface com outros domínios do conhecimento humano. Quando comecei a
atuar como pró-reitor e a participar de encontros com professores de
outras áreas, tive a oportunidade de diversificar minhas expectativas e
de completar minha visão sobre o ambiente educacional e da ciência.
Quando fui eleito presidente do Fórum de Pró-Reitores de Pós-Graduação e
Pesquisa pude, através do encontro de grandes pessoas, aprender ainda
mais.
E sua experiência na CTNBio?
— Exerci a presidência da CTNBio no mesmo período em que era presidente
do CNPq. Atualmente um desafio muito interessante, e se considerarmos
aquele período como mais “sereno” em relação ao que temos hoje, posso
garantir que os membros da CTNBio que trabalhavam comigo naquela época
tinham a nítida sensação de que aquele era o período mais conturbado da
jovem vida da Comissão.
Gostaríamos que terminasse falando de seu trabalho como neurocientista e das pesquisas sobre epilepsia e a droga pilocarpina.
— A pilocarpina, droga conhecida há muito tempo e que é extraída de
arbustos da Região Nordeste, vem sendo usada há muito tempo no
tratamento do glaucoma. Também já se conhecia o fato de que ela tinha
efeito excitatório quando aplicada em neurônios. O nosso achado que
acabou sendo fundamental para os avanços no campo das epilepsias foi
verificar que a pilocarpina, em altas doses, poderia ser utilizada como
ferramenta no desenvolvimento de um novo modelo experimental de
epilepsia muito semelhante àquele observado em seres humanos. Nesses 20
anos de trabalho com esse novo modelo experimental o nosso grupo e
vários outros do país e do exterior têm podido compreender como um
cérebro anteriormente normal pode, a partir de uma lesão, desenvolver
mecanismos plásticos que acabam levando à epilepsia. O processo todo é
bastante complexo e tem demandado a participação de cientistas de várias
áreas, uma verdadeira convergência. Acreditamos que a melhor
compreensão desse fenômeno possa contribuir na busca de novas
estratégias de tratamento, não só para as epilepsias mas também para as
patologias cerebrais que resultam da degeneração neuronal das mais
variadas etiologias.