domingo, 5 de agosto de 2012

A reconstrução do homem

Nota tomada de Pesquisa Fapesp nº136 (Julho 2007) 

Com potencial para alterar profundamente o desempenho humano, a nova convergência de tecnologias deve ser debatida pela comunidade científica


Mariluce Moura e Neldson Marcolin





O neurocientista Esper Abrão Cavalheiro, 57 anos, assessor do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), está nesse momento encarregado de uma tarefa muito especial. Ou melhor, ele se vê inteiramente atravessado por uma missão titânica: provocar um intenso e, se possível, produtivo debate na sociedade brasileira sobre as chamadas tecnologias convergentes, para que o país não se atrase além da conta nesse novo campo tecnocientífico que poderá provocar, em futuro próximo, transformações formidáveis no desempenho do ser humano, na exploração de seus limites potenciais e na conservação de sua saúde – entre outros efeitos. “Precisamos ter um feedback da comunidade científica sobre esse tema para que possamos discuti-lo com o governo, com os empresários e com os cidadãos deste país”, resume Cavalheiro.
A rigor, as chamadas tecnologias convergentes, uma vasta área de interação da pesquisa em nanotecnologia, biotecnologia, tecnologia da informação e ciência cognitiva, fizeram sua estréia na cena pública com este nome em junho de 2001, numa reunião organizada pelos pesquisadores norte-americanos Mihail C. Roco e William Sims Bainbridge, com apoio da National Science Foundation (NSF), em Arlington, Virgínia. Desse encontro saiu o documento Converging Technologies for Improving Humam Performance, um cartapácio de quase 500 páginas das quais emergem possibilidades técnicas até aqui impensáveis, muitas delas beirando a pura ficção científica, para âmbitos tão distintos quanto o da defesa militar e o da saúde humana.
Dois anos depois, a Comissão Européia resolveu lançar um olhar mais enraizado em sua tradição humanística às tecnologias convergentes e publicou o pequeno documento Converging Technologies: Shaping the Future of European Societies, com perto de 70 páginas, mas ambicioso no propósito de definir o novo campo segundo um european approach. De acordo com ele, “os cidadãos da Europa se beneficiarão das CT se elas forem implementadas com vistas aos cuidados de saúde, processamento de informação e comunicação, mitigação ambiental, fontes de energia e outras áreas de interesse público e pessoal”.
É nesse universo complexo das tecnologias convergentes (TCs) que Cavalheiro, professor titular de neurologia experimental da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), se vê mergulhado há alguns meses para coordenar a discussão do que deve ser a participação nacional ativa na circunscrição das pesquisas, das bases de financiamento, dos marcos regulatórios, das políticas, enfim, que vão consolidar os marcos fundadores dessa área. Cientista respeitado, com uma contribuição importante para a definição de modelos experimentais de epilepsia, já faz algum tempo que ele ocupa postos importantes na gestão da política científica no país, incluindo a presidência do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A seguir, os principais trechos da entrevista que Cavalheiro concedeu a Pesquisa Fapesp:

Há um tema novo que nesse momento ocupa bastante suas reflexões, que é o das tecnologias convergentes, principalmente na área médica. Podemos começar pelo conceito: o que são as tecnologias convergentes?
— Ao observar o desenvolvimento da ciência, verificamos que existem momentos em que há uma fragmentação que facilita a compreensão de fenômenos mais intrínsecos de uma determinada área, e outros em que ocorre certo agrupamento, uma convergência. Essa alternância é fundamental e, para exemplificar com algo mais recente, pode-se recorrer à biologia, que passou por um período de fragmentação, de divisão em várias disciplinas dela derivadas. Nas últimas décadas, várias dessas disciplinas, em associação com outros campos do conhecimento, entraram num movimento convergente ao redor do gene ou do DNA e que propiciou o surgimento deste fantástico campo da genômica e suas ramificações. Mais recentemente – e agora falando de forma específica desse tema ao qual estou me dedicando –, Mihail Roco, um cientista muito influente da área de nanotecnologia e que conseguiu alavancar grandes financiamentos nos Estados Unidos, foi chamado pela National Science Foundation (NSF) para provocar outro tipo de discussão. Em 2001, ele e William Bainbridge organizaram uma reunião que denominou de Converging Technologies for Improving Human Performance. 

Foi então a primeira reunião para discutir essa convergência de tecnologias?
— Esse primeiro encontro nos Estados Unidos propôs a atuação convergente de quatro áreas: a nanotecnologia, a biotecnologia, a tecnologia da informação e a ciência cognitiva – hoje ampliada para toda a neurociência, com o objetivo de promover a interação entre sistemas vivos e artificiais na busca de novos dispositivos ou fármacos que sirvam para expandir ou melhorar as capacidades cognitivas e comunicativas, a saúde e a capacidade física das pessoas e, em geral, produzir um maior bem-estar social.

Onde ocorreu a reunião?
— Em Arlington, Virgínia, onde se reuniram pesquisadores dessas quatro áreas e que, de alguma forma, já trabalhavam com o conceito da convergência. Por exemplo, nanotecnologia e biotecnologia convergiam dentro de um projeto para se encapsular novas drogas ou para diminuir efeitos colaterais de medicamentos. Outros associavam tecnologias da informação (TI) com biotecnologia para alerta de desastres biológicos via comunicação rápida. Assim, algumas áreas que estavam caminhando isoladamente foram conclamadas a participar conjuntamente (converging technologies) do esforço na solução de importantes questões humanas. Penso que o termo “tecnologias convergentes” não seja a melhor tradução, porque elas por si sós não convergem como, por exemplo, no caso das tecnologias digitais. Aqui, tecnologias inicialmente separadas são chamadas a contribuir na construção de um novo paradigma, daí eu preferir chamar de “nova convergência tecnológica” ou “convergência de tecnologias”.

Não são tecnologias que dialogam entre si.
— Estamos falando de áreas de grande desenvolvimento recente e que, mesmo isoladamente, são capazes de trazer modificações significativas na sociedade e no ambiente. O simpósio americano teve o objetivo de mostrar as inúmeras vantagens que podem advir de sua interação, não no sentido daquilo que uma possa proporcionar ao desenvolvimento da outra, mas na construção de propostas a partir de perguntas comuns. Ali, o título apontava como objetivo o “aprimoramento do desempenho humano” e a discussão indicou as inúmeras possibilidades de aplicação, como a melhora do desempenho humano, da comunicação global, do prolongamento da vida etc.

Quer dizer que não visava somente à saúde?
— Embora possa se considerar a saúde humana como peça central do simpósio, chegou-se mesmo a propor um novo ambiente social a partir da nova convergência, o que, em determinado momento do simpósio, foi proposto como o “renascimento da ciência”. Isto é, uma nova era da ciência e da tecnologia resultante do agrupamento dessas áreas, e que poderá fazer diferença na sociedade do futuro. Outros aspectos estiveram relacionados ao uso da convergência na segurança das nações ante os novos tipos de agressão – guerra biológica ou química, por exemplo –, levando à necessidade de um aprimoramento no sistema de defesa dos países, e que envolveria desde cuidar fisicamente do soldado que está no front até provê-lo com roupas que pudessem estar em contato, via satélite, informando suas condições de combate. Entretanto, quando se observa mais de perto o documento, vê-se que grande parte dele se dirige ao potencial humano, aos dispositivos para substituição de órgãos ou parte do corpo, à comunicação sem a barreira de diferentes línguas, isto é, na direção de uma nova sociedade.

Essas idéias estavam então bem localizadas nos Estados Unidos. Mas em sua recente viagem para uma reunião sobre o mesmo tema na Áustria este já ganhara uma dimensão internacional. Como se dá a discussão das tecnologias convergentes em 2007?
— Em 2004 saiu o primeiro documento da Comunidade Européia sobre o assunto e ele ganhou um nome diferente: Converging Technologies for a Diverse Europe. Nesse texto compreende-se que a Europa – historicamente mais humanista, e que representa um conjunto de países com culturas, às vezes, muito distintas e com níveis diferentes de desenvolvimento econômico e social – procura incluir a dimensão humana, suas culturas e seus valores na nova convergência, para além da busca de um melhor desempenho. Questões sobre o que e em quem aprimorar esta ou aquela função são complicadas e essa discussão não pode ficar restrita apenas ao ambiente científico. Dessa forma, o documento europeu se lança sobre questões mais prementes da sociedade humana e de como a nova convergência pode auxiliar na solução de problemas como a energia, mudanças climáticas, poluição, aumento da obesidade, da hipertensão, da longevidade humana, o abuso de drogas psicoativas etc., além de propor a ampliação da nova convergência com a inclusão das ciências humanas e sociais, parâmetros fundamentais para a compreensão do humano.

Quer dizer, a Europa muda o enfoque das tecnologias convergentes.
— Dentro do documento americano a importância de “sair na frente” está claramente associada à noção de competitividade, não só científica mas de garantia de mercado. A Europa tenta amenizar esse aspecto e se interroga até aonde se pode ir com a nova convergência sem que seus cidadãos – já que são eles que realmente financiam os avanços científicos e tecnológicos – participem do debate e decidam sobre sua direção. 

O problema então é como se estabelece esse campo das tecnologias convergentes sem que ele seja associado à manipulação da vida dos indivíduos por instâncias de poder incontroláveis.
— Pode-se dizer dessa forma. A leitura atenta de qualquer dos documentos produzidos por diferentes países sobre a convergência tecnológica possibilita antever que se descortinam benefícios fantásticos para a saúde humana, os quais têm sido recebidos com verdadeiro entusiasmo. Na interação homem-máquina, por exemplo, poderíamos empregar as técnicas de informação para resolver determinados problemas de motricidade ou de comunicação de pessoas com problemas graves de linguagem, visão ou audição etc. Mas quando se percebe que os limites entre a ação terapêutica e o aprimoramento de funções cognitivas estão pouco visíveis esse entusiasmo diminui. 

É uma discussão que se estabeleceu em relação a drogas como o Prozac, não? Deve-se tentar livrar a humanidade da tristeza, tratá-la como se fosse uma patologia?
— Essa discussão que tem ocorrido com mais freqüência nos ambientes das ciências humanas e sociais, e que em certa medida se associa ao repúdio àquilo que se tem chamado de medicalização da saúde, começa a indagar quem terá o direito de decidir sobre o que deve ser aprimorado, e quando, e em quem. Quais serão os possíveis efeitos sociais? Que instituições vão cuidar de sua regulamentação? Entretanto, a nova convergência parece já ser uma realidade que veio para ficar, basta para isso observar o número grande de eventos médicos que têm ocorrido nos últimos dois ou três anos com o título de Converging technologies and new drugs ou Converging technologies for medical equipments etc. Embora a nova convergência não seja em si um programa formal para o financiamento da ciência e da tecnologia, seus objetivos têm norteado outros programas, tanto nos Estados Unidos como na Europa.

Mas antes de entrar no detalhamento operacional, vamos falar da reunião na Áustria, para então chegar ao Brasil.
— Dentro do Programa Quadro 6 da Comunidade Européia foi lançado um edital para o estudo da nova convergência não só do ponto de vista do desenvolvimento científico, mas de sua interface com o desenvolvimento da sociedade européia. Assim, formou-se uma rede de pesquisa, cada grupo com um objetivo específico, liderados por pesquisadores da Alemanha coordenados por Nico Stehr. Para ele, que tem se dedicado ao campo de estudos que intitula de knowledge politics, a crença de que maior conhecimento redunda obrigatoriamente em maior bem-estar deve ser repensada. Maior conhecimento e sua adequada aplicação podem, sim, levar ao maior desempenho econômico, mas não implica que o ganho resultante seja partilhado pela sociedade. Mas este assunto não era o foco central dessa reunião. Ali, e por ser a segunda de três reuniões planejadas, os grupos apresentaram os resultados parciais de seus estudos que buscavam entender o papel da nova convergência como motor central das iniciativas de inovação e seus possíveis impactos sobre o futuro da sociedade européia.

E quando foi a primeira?
— No ano passado. Este ano foi uma avaliação de meio-termo sobre como as pesquisas estão indo e, no próximo, deve ser apresentado o documento de consolidação das discussões. Foi bastante interessante conhecer estudo que aborda aquilo que os cientistas europeus consideram ou não “realizável” a partir da convergência da nanotecnologia, da biotecnologia, da tecnologia de informação e da neurociência. E nessa reunião, com cerca de 80 participantes, foi interessante verificar discussões acaloradas sobre o uso dessa convergência no transumanismo, na criação de seres híbridos (humano-máquina) etc. Alguém chegou mesmo a dizer: “Chegamos aos Cyborgs”.

Eu pensava exatamente nisso…
— Só que dessa vez podemos querer ir além de um filme de ficção científica.

Sua participação foi como assessor do CGEE?
— O CGEE está iniciando um estudo que pretende abordar os desafios e as oportunidades que a nova convergência pode trazer para nosso ambiente científico e tecnológico e para a sociedade. Eu ainda estou tentando compreender as diversas vozes que ouvi, ora entusiasmadas com as fantásticas possibilidades oriundas das aplicações da nova convergência, ora céticas e pessimistas. É possível que o que mais tenha chamado a atenção seja exatamente essa disposição de colocar a discussão em âmbito público, já que a nova convergência traz consigo dilemas éticos importantes para que ela fique restrita aos ambientes científicos. Não se pode postergar esta discussão para quando seus efeitos forem conhecidos na prática.

O que se pensava em levar ao debate público eram as aplicações potenciais das tecnologias convergentes na medicina?
— A primeira preocupação era com a institucionalidade dessas tecnologias e de como elas permeiam as instituições humanas, entendendo institucionalidade como “as regras do jogo”. Outros aspectos discutidos relacionam-se com o gerenciamento e regulação dos produtos e serviços resultantes da nova convergência, seus aspectos éticos e legais, e seu impacto sobre a sociedade. Um aspecto paralelo, mas nem por isso menos importante, relaciona-se ao papel que as convicções religiosas podem ter na percepção pública da nova convergência, dado que as decisões individuais não são simplesmente baseadas no conhecimento corrente. 

Mas ante essa preocupação com o desmerecimento do aspecto da religiosidade pessoal, individual, levanta-se algo bem complicado: como o Estado laico pode se mover nesse terreno? Estamos no Brasil com um problema em torno da autorização do uso das células-tronco embrionárias para pesquisa, por pressões religiosas, e já vamos abrir a discussão sobre o limite possível da intervenção sobre o indivíduo proposta pelas tecnologias convergentes. Na condição de assessor de um órgão do CGEE, qual a sua visão sobre isso?
— Embora haja uma discussão bastante importante sobre a utilização das tecnologias emergentes, tanto no Brasil como em vários outros países, eu ainda não tenho uma posição definida, se é que isso é possível, sobre o assunto e nem isso me tem sido demandado na minha atuação no CGEE. Trata-se de uma questão relevante, principalmente ao verificar que, ao lado do avanço recente da ciência, vivemos um período de distúrbios sociais significantes e que muitas vezes são justificados por diferenças religiosas ou culturais. A compreensão e a inclusão desses importantes valores humanos nas discussões sobre o encaminhamento futuro da ciência e da tecnologia podem contribuir para melhorar a nossa convivência social.

Qual é a sua expectativa de o tema das tecnologias convergentes chegar ao Brasil da maneira como já é discutido na Europa e nos Estados Unidos?
— Temos no país uma sociedade científica bastante atuante nas áreas-chave da nova convergência. O trabalho desenvolvido no CGEE leva este fato em consideração e será importante saber como esses pesquisadores pretendem participar desse movimento em torno da convergência e quais os desafios que ela nos apresenta. Se observarmos os documentos já referidos, vamos notar que eles apontam para os possíveis benefícios que a convergência pode trazer para os países em desenvolvimento. Mas não acredito que os pesquisadores brasileiros queiram se privar do debate e de atuar ativamente dessas decisões.

Que mudanças concretas poderemos ver dentro de cinco, dez anos talvez?
— Não precisamos esperar muito, já que alguns dispositivos concebidos através do princípio da convergência tecnológica já estão em uso. Pensemos na área médica, por exemplo, onde uma microcâmera incluída em um comprimido emite, em seu percurso após ter sido deglutido, imagens sobre todo o trato digestivo para um receptor externo ao corpo. Estas imagens podem auxiliar no diagnóstico de várias patologias gastrointestinais sem o uso de técnicas invasivas. Outros exemplos incluem a incorporação de drogas em nanocompostos dirigidos a órgãos específicos que ao mesmo tempo que aumentam a eficiência do tratamento podem diminuir os efeitos colaterais. Alguns desses procedimentos já estão em uso ou estão em fases avançadas de estudo aqui no país.

O que vem a ser “aprimoramento do indivíduo”?
— O sentido é muito amplo, mas a nova convergência olha esse aspecto de duas formas: na correção de limitações ou na aceleração de processos normais. No primeiro caso podemos desenvolver dispositivos que restituam a visão, a audição ou o movimento a pessoas que apresentem estes problemas, no segundo, poderíamos pensar no uso de um chip que acelerasse o aprendizado ou que facilitasse a criatividade. Nesse sentido, a imaginação pode ir longe.

Então a discussão é: qual a legitimidade desse tipo de intervenção?
— Sim, pois ao lado dessas incríveis possibilidades fica a questão de quem vai decidir sobre o que vale ou não a pena de ser aprimorado e para quê.

Como será essa discussão em termos institucionais no Brasil? O que o CGEE está articulando com outros órgãos?
— Organizamos, recentemente, uma reunião no CGEE com vários cientistas das áreas centrais da convergência ao lado de outros das áreas sociais e humanas. Foi extremamente proveitoso para o delineamento do estudo que ora iniciamos. Entretanto, foi surpresa observar que, embora vários dos presentes já atuassem na interface da convergência, alguns não estivessem acompanhando os desdobramentos e as discussões que estão correndo no ambiente internacional de ciência e tecnologia. Esta observação veio reforçar a necessidade de ampliar o debate em nossa comunidade, principalmente pelo fato de que essa mesma comunidade tem atuado de forma extremamente competente na formação de recursos humanos para atuar no futuro próximo. No trabalho do CGEE está prevista a participação de órgãos do governo, de empresários e outros segmentos da sociedade que atuam no campo da ciência, tecnologia e inovação.

Abrir canais para que essa discussão aconteça no Brasil ajuda o CGEE, que tem cinco anos, a cumprir seu papel?
— Em certa medida, nós brasileiros temos muita dificuldade em trabalhar questões de longo prazo e as preocupações do dia-a-dia tomam quase todo o tempo, deixando a sensação de que muito resta por fazer. Entretanto, não podemos deixar de nos preocupar com os possíveis desdobramentos de decisões tomadas no presente e qual o impacto que elas poderão ter no futuro da sociedade. Os países mais bem estruturados fazem de forma contínua estudos de prospecção e de futuro na tentativa de antever cenários prováveis e desejáveis para daqui a 20 ou 50 anos, de forma a se estruturarem para que isso seja alcançado. As metodologias utilizadas nesses estudos são muito ricas e variadas e o CGEE tem se dedicado a utilizá-las nos seus estudos dirigidos ao campo da ciência, tecnologia e inovação.

Portanto, com enorme grau de incerteza.
— A ocorrência de eventos não previstos e graus de incerteza estão incorporados ao processo de pensar o futuro de forma que os estudos não prevêem um cenário único nem rotas de atuação rígidas que não possam ser modificadas no processo de sua execução. Quem poderia prever as mudanças recentes decorrentes do ataque ao World Trade Center de Nova York e, em decorrência dele, os investimentos financeiros que vêm sendo feitos no que se relaciona à segurança nacional daquele país? Estes fatos recentes devem obrigatoriamente ser incluídos nas agendas dos estudos prospectivos. 

Quando o senhor fala em projetos para 2050 no Brasil, está pensando em que áreas?
— O país tem se destacado em temas importantes não só para nós brasileiros, mas para toda a humanidade. Pensemos nas mudanças climáticas e no desenvolvimento limpo, nas energias do futuro, no uso sustentado da nossa rica biodiversidade. Não podemos mais ficar apenas corrigindo aquilo que já fizemos de errado, é necessário pensar quais os próximos passos e que conseqüências eles poderão ter no futuro.

Como se deu o seu trânsito da pesquisa e do ensino para o CNPq e CGEE?
— Posso considerar essa mudança como um “presente” de uma pessoa admirável e que eu não conhecia até aquele momento, o ministro Ronaldo Sardenberg, que durante sua passagem pelo MCT convidou-me para trabalhar a seu lado. Ampliar minha atuação do ambiente universitário para trabalhar na elaboração de programas e políticas de ciência e tecnologia foi uma experiência notável. Aprendi muito, não só com o ministro mas com vários membros da equipe, em particular com o secretário executivo, Carlos Américo Pacheco, outra cabeça privilegiada. E contribuí com muita dedicação e trabalho nas propostas do MCT.

Seu interesse pela política de C&T vem desde seu tempo de pró-reitor da Unifesp, não é?
— O fato de estar trabalhando há quase 30 anos na Unifesp tem sido um grande privilégio. O que, por um lado, foi sempre uma grande vantagem, isto é, ela ter sido centrada na área da saúde, significou, ao mesmo tempo, uma desvantagem quanto à vivência do conceito de universidade, da interface com outros domínios do conhecimento humano. Quando comecei a atuar como pró-reitor e a participar de encontros com professores de outras áreas, tive a oportunidade de diversificar minhas expectativas e de completar minha visão sobre o ambiente educacional e da ciência. Quando fui eleito presidente do Fórum de Pró-Reitores de Pós-Graduação e Pesquisa pude, através do encontro de grandes pessoas, aprender ainda mais.

E sua experiência na CTNBio?
— Exerci a presidência da CTNBio no mesmo período em que era presidente do CNPq. Atualmente um desafio muito interessante, e se considerarmos aquele período como mais “sereno” em relação ao que temos hoje, posso garantir que os membros da CTNBio que trabalhavam comigo naquela época tinham a nítida sensação de que aquele era o período mais conturbado da jovem vida da Comissão.

Gostaríamos que terminasse falando de seu trabalho como neurocientista e das pesquisas sobre epilepsia e a droga pilocarpina.
— A pilocarpina, droga conhecida há muito tempo e que é extraída de arbustos da Região Nordeste, vem sendo usada há muito tempo no tratamento do glaucoma. Também já se conhecia o fato de que ela tinha efeito excitatório quando aplicada em neurônios. O nosso achado que acabou sendo fundamental para os avanços no campo das epilepsias foi verificar que a pilocarpina, em altas doses, poderia ser utilizada como ferramenta no desenvolvimento de um novo modelo experimental de epilepsia muito semelhante àquele observado em seres humanos. Nesses 20 anos de trabalho com esse novo modelo experimental o nosso grupo e vários outros do país e do exterior têm podido compreender como um cérebro anteriormente normal pode, a partir de uma lesão, desenvolver mecanismos plásticos que acabam levando à epilepsia. O processo todo é bastante complexo e tem demandado a participação de cientistas de várias áreas, uma verdadeira convergência. Acreditamos que a melhor compreensão desse fenômeno possa contribuir na busca de novas estratégias de tratamento, não só para as epilepsias mas também para as patologias cerebrais que resultam da degeneração neuronal das mais variadas etiologias.

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